Trigo do cerrado: o novo aliado da panificação brasileira

Prática • 21 de julho de 2025
O sol está se pondo sobre um campo de trigo.

O setor da panificação no Brasil sempre teve uma forte dependência da importação de trigo. Estima-se que cerca de 50% a 60% do consumo interno seja suprido por grãos trazidos de fora, especialmente da Argentina, dos Estados Unidos e do Canadá.


No entanto, uma revolução silenciosa vem ocorrendo no coração do país: o trigo cultivado no cerrado brasileiro está se tornando uma alternativa real, viável e estratégica para a produção de farinha de qualidade.


Para os empreendedores da alimentação e da panificação, entender essa transformação pode significar redução de custos, diferenciação de mercado e apoio ao desenvolvimento nacional.


O que é o trigo do cerrado?


O cerrado, segundo maior bioma brasileiro, ocupa cerca de 24% do território nacional e se estende por estados como Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Tocantins, Bahia e o Distrito Federal.


Historicamente voltado para a produção de soja, milho e pecuária, esse bioma começou a ser explorado para o cultivo de trigo a partir dos anos 2000, com apoio decisivo da Embrapa Cerrados e Embrapa Trigo.


A missão era clara: desenvolver cultivares de trigo que suportassem o clima tropical, com menos chuvas no inverno e temperaturas elevadas.


O resultado foi uma nova geração de trigos adaptados, com ciclo curto, resistência a doenças e boa produtividade, abrindo um novo horizonte para a agricultura brasileira.


Por que o trigo do cerrado é estratégico para o Brasil?


Além da possibilidade de ampliar a autossuficiência nacional em trigo, o cultivo no cerrado traz ganhos logísticos, ambientais e econômicos:


  • Descentralização da produção: tradicionalmente concentrada no Sul, a ampliação para o Centro-Oeste e Sudeste reduz pressões regionais e favorece a logística de distribuição.
  • Redução da dependência externa: menos exposição às flutuações cambiais e às crises geopolíticas que afetam os preços internacionais.
  • Rotação de culturas: aproveitamento da entressafra de milho e soja, melhorando o manejo do solo e reduzindo o uso de defensivos.
  • Geração de renda local: movimenta a economia de regiões agrícolas emergentes, cria empregos e incentiva o cooperativismo rural.


Para o setor de panificação, isso se traduz em mais estabilidade de fornecimento, preços potencialmente mais competitivos e possibilidade de trabalhar com produtos de origem nacional.


O trigo do cerrado já está sendo usado em farinhas?


Sim. E isso é uma ótima notícia para o setor.


Diversos moinhos nacionais já estão utilizando trigo tropical, seja em misturas com outros trigos (conhecidos como blends), seja de forma pura em farinhas destinadas a padarias, confeitarias, fabricantes de massas e biscoitos.


Essa aplicação se dá de forma gradual, conforme os moinhos avaliam os lotes recebidos, seus teores de proteína, força panificável e desempenho tecnológico.


Em muitos casos, o trigo do cerrado atende plenamente à panificação direta (pães franceses, pães leves, massas frescas), especialmente quando combinado com boas práticas de fermentação e adição de melhoradores.


Qualidade da farinha


A farinha obtida do trigo cultivado no cerrado brasileiro apresenta características técnicas altamente promissoras. Em regiões de menor disponibilidade hídrica, a planta tende a reduzir sua produtividade em volume, porém compensa essa limitação com a formação de grãos com maior concentração proteica.


Essa elevação no teor de proteína — frequentemente acima de 13% — resulta em farinhas com força panificável (W) superior a 300 e alta estabilidade durante o processo de mistura. Tais parâmetros tornam essa farinha comparável àquelas produzidas com os melhores trigos de origem canadense, reconhecidos mundialmente por sua qualidade.


O papel da Embrapa e das cooperativas


A viabilização do trigo do cerrado só foi possível graças a pesquisa pública e parcerias com o setor produtivo. Destacam-se iniciativas como:


  • Desenvolvimento de cultivares resistentes à doenças e adaptadas ao cerrado.
  • Projetos-piloto com moinhos e panificadoras para avaliar o desempenho das farinhas.
  • Testes industriais coordenados por instituições como EMATER, cooperativas de produtores e universidades públicas.


Esses projetos não apenas confirmaram a viabilidade agronômica do cultivo, como também validaram o uso na indústria da alimentação.


Oportunidades para os setores


Para os cerealistas:


O cultivo de trigo no cerrado representa uma oportunidade estratégica para investimentos em infraestrutura de armazenagem e beneficiamento, diante do aumento do volume colhido em regiões tradicionalmente menos exploradas para essa cultura. A descentralização produtiva exige soluções logísticas regionais e oferece retorno a médio e longo prazo.


Para o setor da panificação:


  • Possibilidade de redução nos custos de matéria-prima, com menor dependência de trigos importados.
  • Desenvolvimento de produtos com identidade territorial e apelo de origem nacional, alinhados às tendências de consumo consciente.
  • Oportunidade de educar o consumidor sobre a qualidade do trigo nacional, promovendo sua valorização e fortalecendo a cadeia produtiva brasileira.


Uma nova identidade para o trigo brasileiro


A médio e longo prazo, o trigo do cerrado pode ajudar a criar uma identidade nacional para a panificação, baseada em:


  • Cultivo tropical adaptado;
  • Sistemas de produção sustentáveis;
  • Cadeias curtas e valorização local;
  • Qualidade tecnológica adequada para o mercado interno.


Essa trajetória é semelhante ao que países como a Itália fizeram com suas variedades de trigo duro, ou o Canadá com seu trigo vermelho de primavera. O Brasil tem potencial — e agora, tem também os meios.


Conclusão


O trigo do cerrado não é mais uma promessa: é resultado de um trabalho de entidades e empresas desenvolvedores de tecnologia e produtores que vem se tornando realidade em fazendas, silos e moinhos brasileiros.


Para os empreendedores da panificação, conhecer e apostar nesse trigo nacional é uma forma de fortalecer o setor, inovar nas receitas e alinhar-se a uma visão mais sustentável e autônoma do food service brasileiro.


Se sua padaria, confeitaria ou indústria alimentar ainda não experimentou as farinhas brasileiras do cerrado, este é o momento. Afinal, produzir com ingredientes de origem nacional, sustentáveis e de qualidade também é um ato de liderança.


Confira nossa entrevista com Kátia Cavaline, que fala mais sobre o trigo, técnicas e as farinhas.


*Este conteúdo foi elaborado com apoio da especialista em trigo, Kênia Meneguzzi, engenheira de alimentos.


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